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Entre a comunidade e a universidade: mobilidade quilombola e reconfiguração dos espaços de pertencimento

  • Foto do escritor: Israel Oliveira
    Israel Oliveira
  • há 7 dias
  • 17 min de leitura

A chegada à universidade impõe desafios que vão além do deslocamento físico: exige acesso à informação, adaptação às burocracias institucionais e a conciliação com as demandas dos territórios de origem.


O acesso à universidade no Brasil ainda é problemático quando consideramos a diversidade de povos que compõem o país. Grupos historicamente marginalizados, como os povos indígenas e quilombolas e outras comunidades, enfrentam dificuldades tanto no ingresso quanto na permanência no ensino superior.


No entanto, não se pode ignorar que, ao longo dos últimos anos, o cenário nacional vem passando por transformações, a implementação de políticas públicas de ação afirmativa, a partir da Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, conhecida como Lei de Cotas para o Ensino Superior: que estabelece a reserva de vagas nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e de ensino superior (como universidades e institutos federais) para estudantes oriundos da escola pública, com critérios adicionais de renda, raça/cor e pertencimento a povos indígenas. Vem impulsionando um cenário de ingresso e acessos ao ensino superior no Brasil.


Quando observamos a situação específica dos povos quilombolas, sobretudo em estados como Alagoas, é possível perceber que, embora a lei tenha criado mecanismos de garantia de direito e inclusão, o acesso de estudantes quilombolas é marcado inicialmente por uma espécie de apagamento étnico.


Em Alagoas, apesar de a Lei de Cotas prever a inclusão de autodeclarados pretos, pardos e indígenas, desde 2013, apenas após a revisão na lei em 2023 os quilombolas foram incluídos nas cotas. Alinhando-se ao processo do SISU de 2024, tornou-se instituído o ingresso nos cursos de graduação na instituição, contemplando o grupo étnico.


A ausência da etnicidade quilombola na política de acesso, redirecionava os estudantes, por muitas vezes acessar a instituição se autodeclarando como pessoa negra, sem qualquer atenção a identidade; mesmo que posteriormente após o ingresso, fosse possível a solicitação da Bolsa Permanência do MEC, criada pela Portaria nº 389/2013 na condição de estudante quilombola.


Este texto, porém, não se propõe esgotar os aspectos variados dos posicionamentos jurídico-burocráticos que envolvem as reverberações desta política pública no Brasil, mas sabemos até o presente momento, que ela vem sendo ajustada e implantada em diferentes ritmos nas instituições de ensino, seja a implantação das bancas de heteroidentificação por algumas instituições ou a especificação ou não da etnicidade quilombola nos processos seletivos, e isso se estende também as pós-graduações.


O foco desse texto, esta muita mais voltado a uma reflexão sobre os processos cotidianos, a mobilização e a colaboração que engloba o acesso de estudantes quilombolas a universidade. Ou seja, iremos problematizar a mobilidade destes estudantes neste muitas vezes hostil ambiente universitário.


Enquanto quilombola e em meio a experiência de ingressar no curso de Ciências Sociais e em seguida na pós-graduação em Antropologia Social[1] no mesmo instituto, desenvolvi interesse e práticas de pesquisa sobre etnicidade e quilombos, partindo de uma perspectiva processualista[2] passei a formular e acumular questões, refletindo sobre experiências vividas a partir deste lugar de formação. Esse trabalho parte de uma abordagem que articula um retorno a memórias e materiais etnográficos que buscam contribuir para a questão sobre a mobilidade quilombola com a universidade.


Inicialmente busco evidenciar as relações familiares, convivências, encontros e cooperações entre quilombolas e apresentar como essas interações são acionadas no processo de ingresso a Universidade; em um segundo momento, refletirei sobre as questões relacionadas as expectativas, cobranças e devolutivas com o território de pertencimento; E por último, retomarei a questão dos processos de mobilização entre quilombolas dentro do contexto universitário em Alagoas.


Influências e caminhos até a universidade


Na comunidade de Cajá dos Negros, localizada na zona rural do município de Batalha/AL, poucas pessoas ingressaram no ensino superior federal, se considerarmos o histórico de existência da comunidade e a quantidade de gerações que vêm concluindo o ensino médio ao longo dos últimos anos, desde sua certificação pela Fundação Cultural Palmares em 2005. Atualmente somos seis na UFAL.


Antes do meu ingresso no ensino superior, em 2018, uma série de processos contribuiu para que a universidade se tornasse uma possibilidade desejada. Um conjunto de acontecimentos foram se acumulando a realidade da comunidade até a chegada deste momento.


Antes mesmo da UFAL se tornar uma realidade possível para mim e outros, um grupo de estudantes passou a seguir os passos de um parente quilombola que havia ingressado, anos antes, no IFAL – Instituto Federal de Alagoas, no campus localizado na zona metropolitana de Maceió, no município de Satuba. Iniciando por volta de 2012 esse processo, o ingresso dele impulsionou a entrada de outros cinco jovens quilombolas do Cajá dos Negros na mesma instituição. O curso buscado era de Técnico em Agroindústria, e entre esses jovens formou-se uma rede de apoio e responsabilidade, todos homens residiam na instituição nos alojamentos.


Esse movimento ocorreu até a chegada do IFAL ao município de Batalha, em 2014, cujas primeiras turmas começaram no fim do mesmo ano. A partir disso, jovens quilombolas passaram a prestar o vestibular para esse novo campus, agora mais próximo a comunidade. Eu mesmo cheguei a prestar o vestibular, me orientando com base nas dicas e nas informações de meu irmão que já estudava no IFAL de Satuba. Mas acabei não estudando neste IF, pois, naquele mesmo ano, meus pais se mudaram para Maceió, e eu vim posteriormente morar com eles.


Dentre esses primeiros jovens, praticamente todos acabaram influenciando e apoiando algum irmão ou primo a também ingressar na rede federal por meio do IFAL. Eu queria entrar justamente porque meu irmão já estava lá. A partir desse processo, e da circulação deles entre a comunidade e a instituições de ensino fora da comunidade, o fluxo de informações e conhecimentos das possibilidades educacionais, ocasionou o ingresso de dois quilombolas na UFAL, ambos da minha família: um primo, no curso de Agronomia no polo de Arapiraca, Agreste alagoano, e meu irmão no curso de química no campus A.C Simões em Maceió no ano de 2015.

A estadia dos meus pais em Maceió não durou muito. No fim do mesmo ano, eles retornaram para a comunidade, enquanto eu e meu irmão, que havia ingressado na UFAL, permanecemos em Maceió, contando com a rede de apoio representada por uma irmã do meu pai lado não quilombola da família que já morava a alguns anos na periferia da cidade, no Bairro do Clima Bom parte alta, bairro relativamente próximo da UFAL. Segundo eles, aquele ano em que moramos todos juntos em Maceió foi um momento importante, um tipo de preparação, para que aprendêssemos a lidar com a cidade. Acabei estudando os dois últimos anos do ensino médio em Maceió, enquanto morava com meu irmão, que seguia estudando na UFAL.


Talvez este processo não esteja descrito com todos os detalhes que o leitor gostaria de conhecer, mas o que desejo apresentar com esse retorno é que: a forma pela qual o ingresso de quilombolas da comunidade Cajá dos Negros na universidade foi sendo viabilizada, não pode ser lida apenas como um esforço individual, mas como um processo atravessado por laços familiares, gerações e redes de cuidado que sustentam e possibilitam em termos de circulação de corpos e informação, as possibilidades de um ponto de apoio localizado fora da comunidade.


Situações como a que vivi não são exclusivas da população quilombola. O antropólogo indígena Felipe Tuxa (2016) também compartilha, a partir de sua experiência, como o ingresso de estudantes indígenas no ensino superior depende da mobilização de redes familiares e estratégias de deslocamento. Ao trazer sua própria trajetória para acessar a universidade, ele menciona, “precisei mobilizar várias estratégias. A primeira delas foi acionar a minha família do lado não indígena. Morei com a minha avó materna para fazer o ensino médio e também para ingressar numa Universidade Federal” (CRUZ, 2016, p. 7) podemos evidência o fato de como a entrada no ensino superior é atravessada por mobilizações e mobilidades familiares, afetivas e territoriais. Assim no caso dos quilombolas do Cajá dos Negros, os caminhos percorridos por estudantes universitários envolvem articulações, redes de apoio e a criação e manutenção de relação entre os espaços acadêmicos e os territórios de origem.


 Mobilidade: Expectativas, Cobranças e Devolutivas


A relação entre o território e universidade, para os acadêmicos quilombolas, não se trata de uma trajetória isolada, e não estou dizendo que não haja casos assim, o ponto que gostaria de destacar é que, ela é viabilizada ou potencializada por relações familiares ou afetivas entre os territórios e localidades estratégicas.


Mas, a chegada à universidade envolve, entre tantas situações, as relações interétnicas, os encontros e convivências com outros quilombolas, com movimentos organizados dentro da universidade, neste cenário envolto de novas experiencias, surge o dilema da manutenção ou do afastamento com seu próprio território. Não tenho subsídios para argumentar da possibilidade do afastamento,

Diante das variadas formas de se apresentar enquanto estudante quilombola, poderia dizer que fiz e vivenciei com outros quilombolas diferentes performasses: há quem pouco acione a identidade quilombola, nem politicamente, no sentido de marcar sua origem quilombola, nem enquanto sujeito de direito ao acionar essa identidade para o acesso a políticas públicas, e há quem acione, seja politicamente ou enquanto sujeito de direito. Em 2018, a única política para estudantes quilombolas na UFAL era a Bolsa permanência, oferecida pelo MEC.  


Durante esse tempo, vivendo e compartilhando percepções de estar na universidade com alguns poucos estudantes quilombolas vindos do Cajá dos Negros e posteriormente os de outros territórios, como meu colega de quarto na residência universitária, vindo da Comunidade de Sapé, localizada entre os municípios de Penedo e Igreja Nova, posso destacar que a identidade quilombola e seu acionamento entre os estudantes e seus territórios, não é algo automático, seu posicionar como tal na universidade, parte de diferentes processos. Em meu caso, cheguei a esse espaço disposto e com o propósito de acessar meus diretos quanto quilombola, e ao longo do tempo me envolvi em práticas e ações políticas como quilombola.


Por outro lado, o primeiro quilombola de Cajá dos Negros na UFAL, só veio, usufruir do direito a bolsa permanência como quilombola de forma plena, em sua segunda graduação, meu colega de quarto, só solicitou esse direito após o primeiro ano de nossa convivência, em meio a recorrentes conversas e processos houve o amadurecimento dessa ideia de estar na universidade como quilombola e acessar a bolsa. O que podemos extrair desses processos para nossa reflexão é que o ingresso de estudantes quilombolas na universidade não é uma presença marcada apenas fisicamente, mas sim, por um posicionamento enquanto quilombola seja enquanto sujeito de direito ou uma performance política.


Sobre os aspectos de uma presença politizada ou organizada dessa juventude quilombola na universidade, retomarei no tópico a seguir melhor essa reflexão.  Neste momento, vamos focar em pontos importantes sobre a relação com os territórios, demandas e expectativas, sejam por uma lógica familiar ou também revestidos sobre uma concepção de demandas comunitárias.


Em meados de 2019 até o fim de 2022, estive realizando minha pesquisa para a elaboração do trabalho de conclusão de curso.[3] Nesse contexto, me engajei em ações e projetos dentro da minha comunidade, demandas e reivindicações feitas por diferentes pessoas, familiares e lideranças, Oliveira (2022), meu campo e trabalho de conclusão foi diretamente atravessado por essas situações, incomodado com o fato de que não havia barreiras para essas demandas e um senso ou narrativa de que eu deveria cumpri-las pois eu estava na universidade na condição de quilombola de Cajá dos Negros.


Tencionado por conta de minha condição de pertencimento à comunidade Cajá dos Negros, fui percebendo que o trabalho de conclusão em si, tinha muito mais valor para mim, pois era parte de minha formação. Em vez de assumir que o produto acadêmico “tradicional” (monografia, dissertação, artigo) seja, por si só, a devolutiva esperada, fui percebendo que acabei sendo tensionado ao longo de toda minha formação, a trazer devolutivas para a comunidade.


Assim, não é difícil você migra do lugar de ser o que busca um ponto de apoio para assim o torná-lo. Acredito que a relação de quilombolas universitários com as comunidades, é em alguma medida mesmo que em alguns casos acabem vivenciando geograficamente distante, são marcadas por constantes interações e expectativas. Ocasionado de diferentes formas nas relações de cada quilombola com seu território.


Essa questão tornou-se um incômodo, e parte a princípio deste processo etnográfico, mas devo assumir que não é algo que só se vivencia em um momento de pesquisa, é presente de diferentes formas e intensidades para os estudantes em suas relações cotidianas de manutenção com a comunidade, sem que ele(a) precise está presente no território.


Em um texto posterior, Oliveira (2023), ao retomar essas implicações, propus a concepção de devolutiva mediada[4] em contraponto a recorrência em que o pesquisador (a), não pertencente ao grupo estudado, vê seu produto acadêmico historicamente suficiente como devolutiva. Sobretudo para os que pertencem e realizam pesquisa com seus territórios, os vínculos estabelecidos afloram uma quebra de barreira as solicitações, sustentado pelas expetativas nesses universitários.

 

Convivências e Mobilizações na Universidade


Gostaria agora de trazer algumas outras questões que foram se apresentando nesta experencia universitária, mas agora com foco naquilo que poderia dizer que se dava na cotidianidade e circularidade na universidade. Ou seja, as implicações referentes aos encontros e presenças quilombolas nesses espaços.

Desde o ingresso na universidade, em espacial ao campus A.C Simões em Maceió, percebi que os espaços de organização política estudantil, eram dominados pelas seguintes organizações, o Levante Popular da Juventude, o Afronte!, A União da Juventude Comunista (UJC) que é ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a União da Juventude Socialista (UJS) braço juvenil do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).


Todos eram muitos atuantes e notava-se, particularmente, que naquele momento e dentro da (UFAL) estavam mais voltados para as discussões de classe e gênero. A raça, por sua vez, era distante, a etnicidade mais ainda e, quando presente, aparecia de forma “periférica” ou como uma espécie de “totem” ou tema que precisava ser carregado.


Buscando me envolver nos movimentos estudantis, iniciei minha participação na organização estudantil dentro do próprio Instituto de Ciências Sociais, no Centro Acadêmico do Curso. Desde esse primeiro contato, percebi que os CAs e DAs eram diretamente influenciados ou disputados pelas chapas ligadas às organizações políticas estudantis citadas anteriormente. Em alguns momentos, senti-me mais como um símbolo do que como sujeito ativo nessas lutas, uma presença convocada para legitimar determinadas pautas, mas raramente convidada a contribuir com elas de maneira efetiva.


Apesar dos convites de integração a esses movimentos, sentia que minha presença ali seria uma exceção instrumentalizada e não parte de uma estratégia de inclusão ou de real escuta e fortificação da presença quilombola. E, por mais que não tenha me envolvido profundamente ao ponto de filiação com esses grupos estudantis, observava a ausência de outros quilombolas, ou pelo menos, essa presença não era uma identidade evidente.


Essa ausência foi ponto de questionamentos internos. Será que era apenas uma questão de acesso à universidade? Apesar de que em Alagoas parecia ter um baixo fluxo de entrada de quilombolas das comunidades no ensino superior, não se trata puramente de uma questão de ausência. Havia outras pessoas da minha comunidade e de comunidades diferentes na UFAL naquele momento, ou seja, elas também estavam na universidade. Ao longo dos anos, fui conhecendo quilombolas de outras comunidades e regiões de Alagoas: de Sapé-Penedo, Quilombo Lunga-Taquarana, Pau D’arco-Arapiraca, Paus Preto - Monteirópolis em diferentes cursos e polos da universidade.


A questão é que em sentidos de “unidade politizada quilombola” na universidade, éramos sujeitos dispersos, não articulados enquanto coletivo. Poderia dizer que a agência identitária estava mais ligada às questões de cada comunidade do que com a ideia de um movimento quilombola universitário. Talvez como eu, muitos deles e delas, também tenham sentido que aqueles espaços não nos contemplavam, que éramos mais objeto do que participantes, mais presença legitimadora do que corpos escutados e acolhidos.


Foi diante desse cenário que na busca por espaços mais coerentes com o que eu esperava naquela vivência, vi surgir a proposta de rearticulação da ANU -Associação de Negros e Negras da UFAL. Ainda que eu já estivesse me afastando das organizações políticas de juventude já estabelecidas na universidade, percebia na ANU uma possibilidade real de amadurecimento político e construção coletiva para ter um lugar na organização. O projeto, que já vinha sendo incentivado por militantes do Instituto Negro de Alagoas - INEG, passou a ganhar forma concreta com estudantes de diversos cursos: Ciências Sociais, Jornalismo, Química, Física, Computação, Serviço Social. Alguns eram amigos, outros se tornaram próximos durante o processo de organização. E foi ali que começamos a desenhar uma proposta política distinta, livre de vínculos partidários diretos e firmemente ancorada nas pautas raciais e de gênero além da classe, com maior possibilidade para a inserção da etnicidade.


A ANU surgiu como um contraponto às organizações estudantis tradicionais que, embora falassem em nome da diversidade, pouco tratavam de maneira séria as especificidades da população negra e, portanto, também a presença quilombola. Esse projeto nos colocou no centro de discussões importantes na UFAL, especialmente quando a universidade passou a debater as bancas de heteroidentificação. A ANU teve papel ativo nesse processo, denunciando incoerências e chamando a atenção, por exemplo, à presença de pessoas brancas autodeclaradas negras que ocupavam vagas reservadas, inclusive dentro das próprias organizações estudantis que se diziam antirracistas naquele momento. Mas, novamente, via a questão identitária ser pouco evidenciada e deixada de lado.


Esse enfrentamento gerou tensões e conflitos, mas também nos tornou visíveis no cenário interno da Universidade. A pandemia da Covid-19, iniciada em 2020, interrompeu o processo de articulação e a ANU não conseguiu se consolidar institucionalmente como gostaríamos. O distanciamento forçado afastou os corpos e dissolveu os laços construídos em termos de organização política. Eu mesmo retornei ao Cajá dos Negros, em isolamento e, quando voltei à Universidade, encontrei a ANU desarticulada.


O que gostaria de chamar a atenção, encontra-se no fato de que não havia processos ou indícios de uma organização estudantil ou juvenil quilombola atuante dentro da universidade. Nós estudantes quilombolas estávamos lá muitas vezes por laços familiares ou convivências em espaços comuns, como a Residência Universitária, acabávamos dialogando e em certa medida fazendo poucas e isoladas articulações.


Recentemente, durante os momentos finais do desenvolvimento de minha pesquisa de mestrado[5] foi que começaram a surgir discussões mais concretas sobre a criação de um coletivo quilombola de juventude em Alagoas, pensado a partir das múltiplas experiencias universitárias. Mas que embora fortemente composto por estudantes universitários, esse coletivo vem tentando se afastar das dinâmicas convencionais dos movimentos estudantis na universidade e se enraizar em uma demanda vinda das próprias comunidades e das lideranças bem como dos incômodos dos estudantes quilombolas.


Em certa medida, essa mobilização busca dar uma resposta coletiva às demandas que um estudante quilombola pode lidar em suas relações com as comunidades e os desafios universitários em Alagoas. Sua base não está restrita à UFAL, mas inclui também estudantes da Universidade Estadual de Alagoas - UNEAL.


Em 21 de março de 2025, nos reunimos na comunidade quilombola de Carrasco, localizada na Zona rural do Município de Arapiraca. O coletivo não surge somente da universidade, mas sim das demandas comunitárias, que ganharam tamanho e peso inviáveis para manter centrada em um único estudante de uma comunidade ou região.  


Diante dos desafios vivenciados no contexto da mobilização política, tanto na universidade quanto no estado de Alagoas, o coletivo ainda em formação tem buscado se organizar mapeando questões e transformando em objetivo ou desafios a serem enfrentados, partindo do fortalecer a juventude quilombola universitária. A proposta inicial vem mapeando a construção de uma rede de apoio que permita responder de forma articulada a demandas que, embora vividas individualmente, muitas vezes são comuns às diversas comunidades quilombolas.


Entre essas demandas, destacam-se o acesso à informação sobre os direitos quilombolas sobretudo para a juventude, o enfrentamento das burocracias que envolvem a permanência na universidade, o fornecimento de orientações a partir de uma perspectiva técnicas às lideranças em situações específicas e, e em certa medida o apoio existencial e emocional aos estudantes quilombolas em seu percurso universitário.

 


Considerações

A presença de estudantes quilombolas no ensino superior, não podem ser compreendidas de maneira isolada ou desarticulada de seus territórios de origem, redes de apoio e enfrentamentos cotidianos. O que procurei apresentar ao longo deste trabalho foi um percurso atravessado por tensões, deslocamentos e apagamentos, evidenciando que a entrada de quilombolas na universidade não foi da melhor forma computadas, onde eram inicialmente viabilizadas na política de cotas não por uma lógica da etnicidade, mais sim inicialmente[1] por uma lógica da racialidade.


A presença quilombola na universidade é atravessada por desigualdades, esse espaço impulsiona o convívio e as trocas e gera dinâmicas de manutenção com seus territórios de origem. Até o surgimento do coletivo de juventude quilombola o que se nota é uma dinâmica marcada por movimentações e colaborações do âmbito familiar e que a fronteira da etnicidade passa a ser acionada a partir das relações interétnicas.


A universidade impõe desafios que vão além do deslocamento físicos, permeado por viabilidades muitas vezes familiares como as experiências apresentadas, circulação da informação, adaptação às burocracias institucionais e a conciliação com as demandas dos territórios de origem. As expectativas e cobranças chegam por uma lógica das relações familiares e da etnicidade, sobrepondo a autoridade acadêmica.


A presença quilombola nesse espaço tensiona as práticas e concepções aos seus territórios de origem, a mobilidade que se apresenta em diferentes contextos, seja em relações de trabalho quando em grande parte os homens saem para as regiões do eixo sul/sudeste em temporadas de trabalhos sazonais, ou aqui neste caso a universidade, “impacta na heterogeneidade de suas experiências e para os estoques culturais que a partir delas se atualizam e são agenciados politicamente na elaboração de projetos de vida futuros” (MURA; SILVA, 2025, p. 5) sobretudo, a  mobilidade entre a universidade com as comunidades, acaba por gerar acúmulos de experiência, e impulsiona mobilizações políticas para com esse contexto. Não se trata apenas de acessar políticas públicas já previstas em normativas, mas de uma presença que tensiona a etnicidade quilombola e os sentidos do próprio espaço acadêmico a partir de epistemologia, modos de vida e práticas que emergem e são atualizados nos territórios quilombolas.


O surgimento e fortalecimento de um coletivo de juventude quilombola, neste contexto e em estágio inicial, são princípios de um processo, carregado de narrativas e articulações agora incorporando a etnicidade. Que se pauta pela escuta e produção de lideranças, na articulação entre experiências diversas e pela tentativa de construção de um projeto político gerado nessa mobilidade.


A um desafio a esse processo que se encontra nas formas e relações de poder, nesse sentido, retornado a obra de Barth (2005), partindo desse referencial, é possível problematizar os desafios na autonomia que um coletivo político de estudantes quilombolas, nas interações com outros grupos politizados, como lidar com essa interação? Ao refletirmos sobre a forma como agentes políticos mobilizam a etnicidade, é importante considerar os efeitos da instrumentalização, sobretudo quando se trata de sujeitos que protagonizam novos espaços políticos, revestidos da etnicidade como é o caso aqui.


A depender da forma como as relações de poder se estruturam, esse movimento corre o risco de ter sua agenda política interferida no sentido de imposição por agentes políticos já consolidados, por redes de movimentos estudantis já estabelecidas, por lideranças tradicionais ou até mesmo por partidos políticos de diferentes matrizes ideológicas. O contexto alagoano apresenta especificidades que agravam esse cenário, mais bem evidenciados na pesquisa de mestrado.[2] Em outras palavras, a ação de agentes políticos, sejam de baixo ou de alto escalão, atuam no sentido de interferir nos grupos étnicos conforme seus próprios interesses estratégicos.

Esse texto é incipientemente em sua produção, trata-se de uma parte não finalizada, mas aqui esquematizadas de um conjunto de situações que estiveram à margem das produções finais em minhas pesquisas, desde a conclusão do curso de ciências sociais, focado na comunidade de Caja dos Negros e agora mais recentemente a dissertação de mestrado em estágios de encaminhamento da defesa, que foca na relação de lideranças quilombolas e os processos de mediação com o estado.

 

No cenário nacional, a juventude quilombola tem outras históricos de articulação, o cenário das lideranças quilombolas em outros estados bem como a formação de uma juventude articulada tem variabilidades, neste sentido caberia uma análise mais atenta a essa questão, que pode ser desenvolvida em outro momento.

Referências

ALMEIDA, A. W. B. Quilombolas e novas etnias. Manaus: UEA Edições, 2011.

ARRUTI, J. M. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Bauru: Edusc, 2005.

BARTH, Fredrik. Etnicidade e o conceito de cultura. Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia, n. 19, p. 15-32, 2005.

BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012.

BRASIL. Portaria MEC nº 389, de 9 de maio de 2013.

CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O índio e o mundo dos brancos: uma análise dos contatos interétnicos no Brasil. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1996.

CRUZ, Felipe Sotto Maior. Indígenas antropólogos e o espetáculo da alteridade. Brasília: Universidade de Brasília, Departamento de Antropologia, 2016. (Série Antropologia, n. 456).

MURA, C.; SILVA, W. F. Entre a rua e aldeias: mobilidade, memória e retomada Pankaxuri (AL). Revista Antropolítica, Niterói, v. 57, n. 1, e61344, jan./abr. 2025.

O’DWYER, E. C. Os quilombos e a prática profissional dos antropólogos. In: ______. Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

O’DWYER, E. C. Uma nova forma de fazer história: os direitos às terras de quilombo diante do projeto modernizador de construção da nação. In: OLIVEIRA, O. M. (org.). Direitos quilombolas & dever de Estado em 25 anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Antropologia, 2016.

OLIVEIRA, I. S. Ciências sociais, pesquisa e devolutiva mediada: pertencimento e uso da autoridade epistemológica. 2023. Trabalho apresentado no X Encontro da Sociedade de Ciências Sociais de Alagoas – XSOCITE, Maceió, 2023.

OLIVEIRA, I. S. Etnicidade, Família e Política: uma etnografia em Cajá dos Negros AL. 2022. Trabalho de conclusão de curso – Instituto de Ciências Sociais, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2022.

OLIVEIRA, O. M. Introdução: direitos dos quilombolas e deveres de Estado. In: ______. (org.). Direitos quilombolas & dever de Estado em 25 anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Antropologia, 2016.

OLIVEIRA, O. M. Territórios quilombolas e direitos. Brasília: ABA, 2005.

Notas

[1] PPGAS – Programa de pós-graduação em Antropologia Social (UFAL)

[2] (OLIVEIRA, 1996; SILVA, 1994; ALMEIDA, 1994; ARRUTI, 2005; O’DWYER, 2002, 2016; OLIVEIRA, 2005, 2016)

[3] Gostaria de apontar que esse período se deu na particularidade e condicionalidade da pandemia de Covid-19 que provocou dinâmicas específicas e modos de lidar com a vida e com o surgimento de demandas.

[4] Propõe que, o pesquisador estabeleça um diálogo entre os interesses e demandas dos pesquisados e suas viabilidades de devolução.

[5] No momento da escrita deste trabalho, encontra-se em estágios finais de agendamento de defesa. Seu foco foi na análise das relações de mediação política de lideranças quilombolas em Alagoas.

[6] Atualmente a UFAL segue o sistema do sisu que passou a incluir cotas para quilombolas.

[7] LIDERANÇAS QUILOMBOLAS E AS REDES DO COTIDIANO: PODER, POLÍTICA E MEDIAÇÃO EM ALAGOAS, que no momento da escrita desse texto, encontra-se em processo de defesa.


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